sexta-feira, 12 de novembro de 2010

Não me pertenço

Eu não decido por mim, eu não consigo me fazer sentir como quero ou como deveria, não consigo mudar, não consigo me aceitar, não mudo a mim nem nada a meu redor e, se quiser, posso viver assim por inércia para sempre, sem sentir as conseqüências. Então me pergunto, o que raios eu estou fazendo morando em mim? Se este corpo é só uma carcaça com cheiros repugnantes, tonalidades horríveis, fluídos asquerosos e espasmos insubordinados, eu não poderia abandonar essa carcaça nojenta e ser apenas o que penso; olhar para as pessoas e as ler pelo que elas pensam e também deixar a elas transparecer só o que penso?  Enquanto eu não posso ser esse espectro inorgânico, preciso lidar com a carcaça, não apenas lidar, não, não, dominá-la.
                É fato, preciso deixar as premissas bem claras antes de discutir e chegar a conclusões, é fato que eu não me pertenço. O processo de usar meu corpo para viver e carregar o espectro de quem sou tem uma série de variáveis, em sua maioria, exógenas, alguns inputs (aos quais eu pouco tenho controle) e funcionamento descoordenado, que em quase nada atende às minhas necessidades e expectativas. Já tentei por anos, desde que “me conheço por gente” dominar e controlar esse processo, em vão. Ouço que preciso deixar o processo fluir e tirar proveito, ver suas qualidades e me divertir com ele, mas como isso é possível quando se odeia tudo a seu respeito?
                Eu não só não me pertenço como estou disposta a me devolver ao fabricante. Se ele aceitar, claro. Eu vejo outros corpos tendo problemas com seus espectros hospedeiros, mas ainda assim tendo uma boa relação, usufruindo desta relação para ser feliz. Eu acho isso lindo. Na terceira pessoa.  Meu corpo é mais presente que eu, ele domina e apodrece qualquer vestígio de leveza e felicidade, consome minhas energias mais do que as fornece, simplesmente não faz sentido. Ele deveria ser um canal pelo qual o que penso possa realizar de maneira palpável meus desejos para ser feliz, mas não, ele é mais forte que eu, funciona por inércia e consome minhas energias, não sobrando muito para ser feliz.
                Mas e agora? Sejamos práticos. Devolvo ao fabricante (wrists cutting alert) ou continuo me debatendo na esperança de um dia nos entendermos? Ou deixo fluir e existir e torcer para um dia sobrar espaço para o pensar? Eu acho que ele, se fosse racional sem a presença do meu espectro racional, deveria ter o mínimo de consideração e solidariedade e dar espaço para o que quero, não ser apenas essa criança mimada incontrolável, hiperativa, é frustrante, pois ficar correndo atrás de uma criança assim, é como correr atrás do rabo. Como estamos falando de uma carcaça burra e asquerosa, não podemos esperar muito, então a parte racional tem que tomar partido, mas como controlar a criança hiperativa não funcionou, cosa facciamo? Tento barganhar, solto aos poucos os impulsos deste corpo cruel e a ele dou chance de mostrar se tem alguma qualidade a qual posso preservar de controles cansativos, para aos poucos migrar para uma condição onde podemos ambos ser felizes (ou apenas menos infelizes, já saio no lucro!), numa construção híbrida (como aquela terceira pessoa genérica que admiro), o maldito “meio-termo”. Prefiro a morte ao meio-termo. Mas sejamos menos orgulhosos, se este estado medíocre me trouxer felicidade, mas felicidade digna, verdadeira, prometo que paro de subestimá-lo e generalizá-lo.
                Então estamos de acordo? Combinamos assim: não me pertenço, mas aceito me pegar emprestado para a experiência de usar este hospedeiro orgânico para, em conjunto com a minha mente (esta sim me pertence), viver bem e feliz. Ouvi hoje que tudo, o mais primário da mente, não só vem do corpo como pertence ao corpo. O que construímos racionalmente parte, inevitavelmente de sentimentos, que partem de impulsos, que partem de necessidades do corpo, logo, a mente “nasce” no corpo e a ele pertence, e não o contrário. Ótimo. Agora resolvemos tudo, estou oficialmente ferrada. Será que posso resolver este impasse em um motim? Quem mais adere? Meus puns? Ora me poupe, minha mente não pertence ao meu corpo coisíssima nenhuma, não admito. Ok, não tenho muita escolha, já percebi que é o que mais faz sentido, assim não teria mesmo como o corpo obedecer a mente e se sujeitar a todas as suas vontades, controles e planos.
                Pois bem, não admito, mas me sujeito a dar ouvidos a essa máquina de secreções e tentar negociar o maldito meio-termo, vamos começar um pouquinho por dia, eu relaxo um pouco a postura e ele relaxa nas câimbras, que tal? Eu abdico do álcool gel e ele dá uma melhorada na pele das mãos, afinal, não tenho 79 anos para precisar fazer plásticas experimentais nas mãos; tento dormir um pouco mais e ele coopera com as dores de cabeça, vamos começar com o mais fácil, combinado? Esperem pelos resultados...

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